O NAUFRÁGIO DO BATÁVIA
CENTRO CÍVICO - LEIRIA
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“O mundo inteiro é um palco; e todos os homens e mulheres são meros actores que entram e saem de cena.”
(“Como Queiram” [1623], William Shakespeare)
Abertura do pano – Encontramos a embarcação Batávia da companhia holandesa das Índias Orientais (Vereenigde Oostindische Compagnie, vulgarmente abreviada para VOC), encalhada no arquipélago de coral ao largo da costa ocidental da Austrália, nas ilhas Abrolhos. Durante a noite de 3 para 4 de Junho de 1629, com uma boa brisa, o navio avançava sob o luar com todas as velas desfraldadas. Entretanto, o vigia julga ter visto águas brancas a rebentar em baixa profundidade. Avisa o capitão, mas este decide não alterar a rota, acreditando tratar-se de um reflexo da lua, pouco depois o Batávia naufragava. As tentativas para reerguer o navio falham e este acaba por partir-se. Dos 341 passageiros e tripulantes, cerca de 40 afogaram-se imediatamente, quando tentavam em vão alcançar uma pequena ilha próxima, os restantes conseguem salvar-se. Esta peça “verídica” tem como personagens principais:
Francisco Pelsaert (c. 1595-1630) mercador, conhecido pelo seu papel como comandante do navio Batávia, mas também de toda a frota de sete navios. Esta que acabou por desmembrar-se depois da escala no Cabo da Boa Esperança. Devido ao naufrágio e motim, a sua reputação entrou em queda, desnorteado acabou por morrer a caminho de Sumatra.
Arien Jacobsz ( ? ) marinheiro experiente, capitão do navio Batávia. Para além da suspeita de ter culpa do naufrágio e cujo verdadeiro papel no motim nunca foi provado, foi preso por negligência e ficou nas masmorras de uma prisão esquecida de Java. Alegou sempre ser inocente de qualquer irregularidade, mesmo sob tortura.
Wiebbe Hayes (c. 1587- ? ) soldado conhecido pelo seu papel de liderança na repressão do massacre dos sobreviventes do naufrágio. Embarcou no Batávia com cerca de 70 outros soldados que estavam a caminho de Java para prestarem cinco anos de serviço de guarnição. Foi durante as dificuldades que viveram, que este demonstrou qualidades invulgares de chefia natural e coragem, que lhe valeram o respeito e a confiança dos seus camaradas.
Jeronimus Cornelisz (c. 1598-1629) farmacêutico, os pais pertenceram à Igreja Menonita, membros de uma igreja anabatista. (Movimento cristão, “radical” da reforma protestante, existindo diversos grupos chamados “anabatistas” com crenças e práticas diferentes: Amish, Irmãos, Huteritas, Menonitas e “Batenburgers”). A família tinha ligações aos “Batenburguers” (com espírito e espada), estes acreditavam que eram os filhos escolhidos de Deus e desde modo todas as posses do mundo pertenciam-lhes. Praticavam a poliginandria, matavam, incendiavam e roubavam. Este modo de vida influenciou a mente do jovem Cornelisz, acabando por seguir os passos do seu pai no negócio farmacêutico da família, exerceu a profissão na sua cidade natal até 1627. Nesse ano, abandonou o negócio devido a divergências com a Câmara Municipal. Mudou-se para Haarlem, onde abriu uma loja perto do centro da cidade. Em novembro desse mesmo ano teve um filho, mas a criança morreu três meses depois de ter sido entregue aos cuidados de uma ama de leite. A causa da morte foi estabelecida como sífilis, considerado um escândalo na época. Cornelisz levou a ama a tribunal, tentando provar que o seu filho tinha contraído a doença através dela. Com a sua reputação em causa e um futuro adverso, vê-se obrigado a vender novamente a loja, bem como todos os seus bens. Foi durante este período conturbado que conheceu e tornou-se amigo do pintor Johannes van der Beeck, mais conhecido pelo pseudónimo Torrentius ("do riacho" ou "do rio"). Durante a sua convivência com este, foi contaminado pelas suas ideias heréticas, acabou por deixar a cidade poucas semanas depois do julgamento do artista e da ruína das suas próprias perspectivas. Viajou para Amesterdão e entrou ao serviço da VOC, embarcando no Batávia em outubro de 1628.
As viagens marítimas desta época eram frequentemente marcadas por epidemias, sendo o escorbuto particularmente comum. Para além das influências religiosas paternas e do artista diabólico, Cornelisz, devia sofrer de neuro sífilis, condição debilitante que afecta o sistema nervoso central, uma manifestação tardia da infecção por sífilis. O seu comportamento errático, os seus delírios e a certeza de que não podia fazer nada de errado, pois Deus inspirava todos os seus actos, tornaram Cornelisz um psicopata alucinado e principal instigador do motim.
Johannes van der Beeck (1589-1644) respeitado artista, mestre de naturezas-mortas, pouco restam das suas pinturas hoje em dia, pois as suas obras foram destruídas. Acusado de ser um adepto da Rosa-Cruz (Ordem esotérica, erguida sobre verdades herméticas do passado), e tendo crenças ateístas e satânicas. É uma personagem imoral e escandalosa, tinha o prazer em ofender deliberadamente todos os princípios da sociedade vigente. Foi acusado de ser blasfemo, condenado e torturado, ficou preso até ser autorizado a sair do país. Um admirador do seu trabalho, Carlos I de Inglaterra interviu e empregou-o como pintor da corte.
Segundo a prática geral da companhia holandesa das Índias Orientais, a autoridade suprema do navio era detida não por um marinheiro, mas por um homem de terra, um alto funcionário com experiência administrativa, política e comercial, que usava o título de comandante (Francisco Pelsaert). Todas as responsabilidades náuticas estavam incumbidas ao seu subordinado, o capitão (Arien Jacobsz). O capitão era um marinheiro experiente, mas com conhecimentos rudimentares de navegação astronómica. O navio era então governado por uma espécie de diarquia coxa: o comandante dava ordens ao capitão, mas às suas ordens faltava a autoridade que só um marinheiro lhes poderia conferir. Uma tal situação era naturalmente uma fonte de incerteza e de fricções. No navio Batávia esta extrema incompatibilidade entre os dois homens já vinha de trás. Dez anos antes durante uma escala na Índia, tinham-se encontrado pela primeira vez e tiveram uma discussão acessa devido à exaltação e alcoolismo do capitão. Este incidente valeu a Arien Jacobsz uma severa admoestação publica dos superiores e por causa disso guardou sempre rancor a Francisco Pelsaert, o responsável pela humilhação. Agora na embarcação Batávia, Arien Jacobsz ao assumir o seu novo cargo via-se sob as ordens de Francisco Pelsaert.
Eis a trama desta peça de teatro que vai agora começar, vidas incompletas e sem Deus vão ser conduzidas ao naufrágio devido à intriga, cobiça, lascívia, inveja e alcoolismo. No arquipélago dos hereges, os horrores engendrados refletem o ser humano à deriva.
Rodrigo Vilhena
Lisboa, Novembro de 2024